A REALIDADE RELIGIOSA NOS DIAS ATUAIS
Não é novidade que a razão
ocupa um papel de quase soberania em relação às atitudes que tomamos e este
fato é mais prevalente quanto mais a razão se fortalece. Exatamente é o que
acontece com a evolução da humanidade. As sociedades mais esclarecidas do ponto
de vista intelectual e do desenvolvimento econômico são o exemplo maior que
podemos oferecer. Povos do chamado primeiro mundo são mais racionais e menos
emotivos ou, pelo menos, valorizam mais os argumentos racionais. Sua forma de
ser no mundo parece ser pautada por um grau maior de objetividade, de fatores
lógicos e científicos. Em contraposição estão os habitantes da África, da
América do Sul e parte da América central onde podemos encontrar uma
perspectiva mais emocional das atitudes e das crenças.
Os estudos da sociologia e os censos geográficos apontam uma diminuição da
filiação a uma religião e mesmo da crença em Deus entre os povos que atingiram
um maior estado de bem estar social. A Holanda possui 36% de ateus, 36% de
crentes em Deus ( teístas) e 28% de pessoas indecisas quanto à existência ou
não de Deus. Fenômeno semelhante ocorre e parece intensificar-se em países como
Alemanha, França, Suíça, Bélgica, etc... Populações com grau maior
escolaridade tendem a ter uma maior descrença em relação a Deus e, não é
novidade, que o ateísmo é mais que uma moda entre os cientistas e intelectuais.
Aparentemente, quanto mais um povo se torna evoluído economicamente e do ponto
de vista do melhor ensino, tanto menos Deus se torna uma crença prevalente.
Evidentemente, que a crença ou a descrença em relação a existência de Deus
não confirmam ou negam a existência de Deus. Não é o objetivo principal do
presente texto examinar os aspectos favoráveis à veracidade da crença em
Deus ou no ateísmo. Não se trata disso. O ateísmo ou Deus não são questões a
serem respondidas por votação ou censo geográfico. Ainda que todos os
habitantes da Terra passem a não acreditar em Deus, se Deus existir, continuará
a existir e o contrário é igualmente verdade. A questão aqui é saber os motivos
do aumento da descrença entre os povos considerados mais esclarecidos e
as possíveis consequências sociais ( não teológicas) que tal concepção poderá
acarretar.
Por que os universitários tendem menos a crer em Deus que os analfabetos?
Por que as pessoas com doutorado apresentam uma probabilidade maior de serem
ateus? Não saberia dizer qual a percentagem desta tendência, mas é uma
impressão bastante nítida esta atração amorosa entre o ateísmo e os
intelectuais. A primeira tendência seria dizer: a crença em Deus não é lógica
e, por isso, os que utilizam melhor ou mais frequentemente a razão chegaram à
conclusão que Deus não existe ou pelo menos tendem a não acreditar em sua
existência. É uma possível explicação, não se pode negar.
Seria, portanto, a razão contrária à existência de Deus? Pode ser que não.
Teríamos que observar a cultura em que se encontra o ateu. A prevalência do
ateísmo entre os cientistas brasileiros é semelhante aos dos cientistas do
primeiro mundo? O cientista é um bom exemplo de racionalidade. Se a prevalência
for a mesma ou semelhante, então seríamos levados a imaginar que a razão e Deus
não gostam de compartilhar o mesmo aposento. Se a prevalência for
consideravelmente diferente, seríamos levados ou tenderíamos a crer que o
ateísmo é mais fruto da cultura e menos relação teria com o uso da razão.
Poderíamos realizar um censo de crença entre os maiores cientistas do mundo.
Entre duzentos ganhadores do prêmio Nobel, escolhidos, aleatoriamente, qual a
percentagem dos que crêem em Deus?
O que foi dito acima parece lógico, mas pode estar escondendo uma forte
razão para o ateísmo: a própria instituição religiosa. Talvez, a descrença não
surja com a razão, mas devido a dúvida razoável. Quanto mais evoluímos em
racionalidade, em cultura acadêmica e geral, tanto menos nos contentamos com
"explicações" que nada ou pouco explicam. É possível que a
"briga" não seja entre Deus e a razão, mas entre a razão e os
representantes de Deus. E quem são os "representantes" ou, pelo
menos, os torcedores de Deus? Bem, aparentemente, são os religiosos e suas
religiões.
Se uma explicação ou crença parecem desafiar a razão, é natural que
aqueles seres que teimam em usar a razão não se tornem simpáticos à tal crença,
seja esta crença de natureza religiosa ou não. É verdade que se diz, comumente,
que a fé não deve submeter-se à razão, que a fé é maior que a razão, que a fé
não é assunto da competência da razão. Tudo isso poderia ser verdade, mas não
basta para a subsistência da crença religiosa entre os povos mais evoluídos do
ponto de vista material e intelectual.
Pessoalmente, não acredito que as universidades formem ateus, forneça diploma
de ateus aos que por ela passam. Acredito que elas podem derrubar o que já
estava prestes a cair. Nem sempre se é derrubado por alguém mais forte, às
vezes, escorregamos e, simplesmente, caímos. Jesus ensinou a Pedro: se a tua
justiça não for maior que a dos escribas e fariseus (religiosos ligados à
tradicional judaica), de forma alguma podereis entrar no Reino dos Céus. Creio
que o mesmo possa se aplicar ao conjunto de algumas idéias religiosas ao se
depararem com os rigores do pensamento racional e das descobertas da ciência.
Se acreditamos que a crença em Deus é imensamente importante na vida de
cada um, se acreditamos que uma sociedade de ateus seria uma sociedade onde o
egoísmo atingiria proporções assustadoras... Que motivos poderíamos oferecer
para a crença em Deus? Crer em Deus, talvez, não seja vital para Deus, mas com
certeza é vital para os homens.
O ateísmo levado a suas últimas consequências, o seu aprimoramento, a
vivência intelectual lúcida e coerente do ateísmo é algo terrível. O aborto é
mais prevalente entre sociedades em que a religião e a religiosidade individual
tem pouca ou nenhuma influência e quanto mais desenvolvida é uma sociedade,
mais o aborto é livre em idade gestacional avançada e sem outros motivos que não
sejam a vontade da "mãe". Países mais desenvolvidos admitem o aborto
com seis meses de gestação e outros até com sete meses. Bebês de até sete meses
são colocados na lata de lixo quando suas " mães" decidem por sua não
existência.
Na Holanda um indivíduo pode solicitar eutanásia mesmo quando uma doença
degenerativa de lenta progressão se apresente com os seus primeiros e leves
sintomas... Muitos idosos da Holanda migram para a Alemanha ( que tem horror à
qualquer coisa que se parece com Eugênia) para não serem forçados a eutanásia
por seus próprios parentes caso revelem doenças como Alzheimer. É a lógica do
ateísmo. Se uma pessoa não é um ser espiritual, se não tem uma finalidade maior
que esteja acima da sua cultura, se já viveu quase tudo que poderia viver, para
que viver com menos qualidade de vida? Por que aumentar os gastos do Estado, do
convênio médico ou das finanças da família com uma vida de pobre qualidade
individual e alto custo social? Não se propõe certas coisas por maldade, mas em
coerência com aquilo que se crê. É a consequência de um mundo sem Deus.
Podemos também alcançar uma religiosidade interior profunda sem
necessidade de um filiação religiosa. Jesus nunca se filiou ao catolicismo,
nunca foi à missa, a um grupo espirita ou outra religião qualquer, mas com
certeza Jesus possuía um imenso conjunto de crenças que podem ser vistas em
suas parábolas. Não se trata apenas em um sentimento profundo de união
com Deus sem saber o que Deus significa e deseja de cada um de nós. O que cada
indivíduo significa em sua estrutura espiritual, saber de forma clara qual a
finalidade da própria existência.
Existem muitas religiões e cada uma tem o seu conjunto de verdades. Não
importa a sua história ou o comportamento de seus fiéis. Ainda assim, podem nos
trazer muitas verdades. Tornar-se um religioso sincero é um caminho para a
santidade, mas não torna alguém santo imediatamente ou imune a erros. Religiões
formais são indispensáveis, sem o catolicismo a essência da mensagem de
Jesus jamais chegaria ao século XXI e acredito que não poderá subsistir o ideal
cristão sem religiões que defendam e perpetuem as idéias cristãs. Se alguém
pôde alcançar uma religião pessoal, uma religião sem nome, tal se dá porque
religiões com nome trouxeram até ela a crença em Deus. O Novo Testamento e
outros livros sagrados jamais chegariam aos dias atuais através da iniciativa
de um indivíduo, foi necessário instituições religiosas, quer se concorde com
elas ou não, quer as julguemos confiáveis ou não.
No futuro, possivelmente distante, cada indivíduo da Terra poderá por si
mesmo alcançar a comunhão divina e aceitar as verdades espirituais fundamentais
sem necessidade de religiões formais, o dia em que a ciência se unir à
concepção de um Deus de amor, mas acredito que esse dia ainda não tenha
chegado, exceto, para alguns seres que transcendem as limitações cognitivas do
homem comum como eu e, talvez, você que me lê, e se elevam acima das convenções
e crenças admitidas na cultura em que vive. Buda e Jesus são exemplos de tais
seres que atingiram a iluminação espiritual independente e apesar das religiões
que o cercavam. Ghandi superou os preconceitos da religião na Índia e abraçou
os párias. Einstein possuía uma profunda religiosidade sem se ligar a qualquer
religião. Muitas pessoas bondosas e honestas não se filiam a qualquer religião,
embora, tenham suas crenças. Entretanto, apesar de tudo, o próprio Cristo
precisou nascer em uma nação monoteísta e extremamente religiosa.
Se as religiões não alcançarem as verdades espirituais fundamentais e se
apegarem a dogmas e rituais, a religião nunca poderá se estabelecer entre os
povos esclarecidos. Será, no máximo, tolerada como uma crença infantil e
inócua. No Brasil, muitas repartições públicas proíbem o uso de crucifixo em
paredes e mesmo o uso de qualquer símbolo religioso ( mesmo que discreto) por
seus funcionários. A situação é imensamente mais dramática na Europa.
Confunde-se estado laico com estado ateu, inquisição com religião.
Como fazer que um jovem esclarecido, que um universitário acredite que o
mundo foi feito em seis dias? Que Jonas foi engolido por uma baleia por quatro
dias e não morreu? No Velho Testamento Deus manda matar, Deus se vinga,
se arrepende e manda matar novamente. Existem dezenas de exemplos semelhantes.
Acreditar que alguém abriu o mar ao meio, fez a Terra parar de girar, fez as
estrelas caírem do céu? Eu não digo que tais coisas não ocorreram, porque não
estava lá para olhar, mas... Não é pedir demais a um ser que agora a pouco
estava usando a razão e obtendo razoável sucesso? Não é pedir algo que não está
de acordo com um ser acostumado à razão? Não seria melhor colocá-los como
elementos alegóricos ou encontrar uma explicação científica para eles?
Não seria melhor, para a própria religião, dizer que são colocações dos homens
e não de Deus? O Novo Testamento é plenamente aceitável para todos os povos,
por que motivo querer impor a bíblia inteira como condição para a fé? Como
conciliar o Deus de amor de Jesus no Novo Testamento com o Deus de Moisés que
manda matar crianças no Velho Testamento?
Se uma religião ou crença religiosa individual ou senso de comunhão com
algo divino não puderem se elevar a um patamar mínimo de racionalidade e senso
comum, se existirem apenas num plano abstrato, subjetivo, relativo, pessoal e
etéreo. Se uma crença pessoal ou religião não puderem superar tais questões
para, humildemente, se aproximarem do homem, então, tais convicções de caráter
religioso condenarão a si mesmas a se refugiarem em países de povos menos
esclarecidos e até o dia em que estes povos também se esclareçam. A religião
como comumente é entendida e mesmo a crença individual que cada um pode ter, se
tornarão um produto do mundo subdesenvolvido. Será este o destino das
religiões e das "religiões" pessoais? Será isso que iremos deixar
para as gerações futuras? Será essa a vontade de Deus?
João Senna. Médico, Palestrante, Escritor, por vinte anos voluntário na Accabem
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