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A sabedoria, quando muita, vira bicho e come o dono!

      Há alguns anos, eu fui convidado para o aniversário de uma senhora, letrada e culta. Como era de se esperar, o presente a ser dado foi um livro. Dito e feito. Comprei o dito cujo e, ao presenteá-la, D. Lúcia me respondeu aos meus votos de felicitações:

     -Isto não é um presente. Um livro é muito mais que um presente, é uma homenagem!

     Aquele agradecimento, depois de muita conjectura, foi incorporado ao meu modo de pensar. A partir daí, toda vez que eu recebo um livro, sempre o recebo como uma homenagem, e não mais como um mero presente.

     Neste final de mês de maio, recebi mais uma homenagem de William Cesar Pirajá, amigo de longas datas.

Ele é pródigo em fazer homenagens. Essa última consta de um livro de adágios - Como diz o Ditado -, onde a médica Helenita Yolanda Monte de Holanda registra 6.122 adágios, além de ditados em verso, apodos e gírias matutas.

     Mesmo sem procurar no livro, e pensando nele, fiquei questionando com os meus botões: "será que está escrito: 'a sabedoria, quando é muita, vira bicho e come o dono'", que meu pai sempre repete?

     No meu estágio de interior, conhecemos um rapaz que era muito sabido. Era muito inteligente e objetivo. Fizemos amizade e começamos a conhecê-lo e a sua história. Filho de um fazendeiro de recursos medianos, com pouco estudo e pouco dado aos compêndios, achou que a vida que levava na roça ou na pequena cidade tinha pouco a lhe oferecer. Decidiu procurar alguma atividade que lhe rendesse muito dinheiro com pouco trabalho. Foi para São Paulo à cata do seu sonho.

     Em São Paulo, visando fazer amizades, passou a frequentar uma igreja evangélica. Procurando emprego, o pastor lhe incumbiu de vender bíblias. Era um grande problema trabalhar naqueles bairros pobres: os tormentos causados pelos cachorros, a má vontade das pessoas em recebê-lo em suas casas, a falta de dinheiro para o pagamento, o atraso nas prestações, os pivetes, tudo arrefecia o entusiasmo. Era difícil vender uma bíblia, dizia ele.

    -Quem fazia parte da igreja já tinha bíblia, e quem não fazia parte dela não queria comprar. Assim, decididamente, a venda de bíblias não era um grande negócio - disse ele.

     O convívio com o pastor lhe deu uma ideia: ser pastor. O dízimo. Ah, o dízimo! Dez por cento do que os irmãos pagavam era um grande negócio. Dez por cento dos rendimentos dos irmãos! Era um achado. Ainda mais, sem impostos! Não havia erro! Em S. Paulo, como os pastores e os fiéis portavam melhor nível cultural, ficava difícil penetrar naquele mundo para quem tinha somente as primeiras letras.

     Voltou para a sua cidade natal com o propósito de ingressar nessa área. Achava que, vindo de São Paulo e com boa lábia, tinha tudo para dar certo.

     Chegando, passou a frequentar uma igreja evangélica. Com a boa conversa que tinha, depois de alguns meses, conseguiu ser nomeado para pastor; não na cidade, mas em lugarejos distantes, lá em cima da serra.

     -Não há problemas, eu começo por lá e, depois, vou subindo na escala até ser o titular da cidade. "Volto para cá" pensou com os seus botões.

     Esperançoso, dirigiu-se ao arraial indicado, que tinha uma só rua, habitado por um povo que não vivia, simplesmente sobrevivia de pequenas plantações e criação de poucas cabeças de gado. Além do mais, os irmãos não eram os mais grados. Muito pelo contrário, eram os mais pobres. Morando numa humilde casa, como eram todas as da localidade, pouco a pouco, seu entusiasmo foi se diluindo, e sua motivação foi se esmaecendo, até chegar à desistência.

     ⁃Dez por cento é muito bom. Agora, dez por cento de nada, doutor, é nada! - disse-me ele.

     Retornou para a cidade à cata de novas perspectivas. Arrumou, na cidade vizinha, um emprego de auxiliar de protético prático. O protético prático também tinha um só boticão e arrancava dentes de quem aparecesse. Para completar, tinha um motor a pedal para fazer obturações.

     Observando muito e perguntando muito mais, com o tempo, considerou-se apto a assumir a profissão. Já era dentista.

     Retornou para sua cidade e alugou uma casa num bairro periférico. Comprou o material que achou necessário e se instalou como novo profissional na cidade.

     Os resultados econômicos não foram satisfatórios. Ninguém aparecia. Deixou o material no local, fechou a clínica e partiu para nova empreitada.

     Percebeu que nada estava dando certo. Naquele momento, apareceu-lhe uma ideia infalível. Não havia como errar: casar com uma mulher rica!

     Andou em festas, na igreja católica, na igreja evangélica, nas sessões espíritas, nas quermesses, nos leilões, nas rezas da roça e em todo ajuntamento humano que existisse.

     Os meses se passaram, e nada.

     -Não posso desistir!

     Pensou nos fazendeiros conhecidos e descobriu um, que era rico e só tinha uma filha, que era evangélica. Passou a frequentar os mesmos lugares e a mesma igreja. Ele procurava sempre se acercar da moça, ao mesmo tempo que exibia seus conhecimentos bíblicos. Bom de papo, vendedor de bíblia, dentista... Com tais atributos, a conquista do coração da moça não foi muito difícil.

     -Agora, estou feito! - pensou.

     Mesmo a contragosto dos pais, e para não causar desgosto à filha única, foi celebrado o seu casamento.

     Casou-se. Havia conquistado o coração da moça, mas não o coração dos pais, sobretudo o do sogro, velho bigodudo e ranzinza.

     O sogro, mesmo contra vontade, deixava pingar algum dinheiro. Dessa maneira, foi para São Paulo comprar o material odontológico de primeira. Com a indumentária toda branca, retornou à sua cidade. Enquanto o material não chegava, sua mulher conseguiu que o pai comprasse uma caminhonete grande, novinha, uma D-10 branca.

     Chegando o material odontológico, instalou-o no consultório original e com a caminhonete, o status de dentista estava pronto. Passou a circular na cidade com a loura no seu carro.

     Os clientes não apareciam! Mas também ele não estava muito preocupado com isso. Já tinha o que queria. Preocupado com a consolidação do casamento, tratou logo de ter um filho.

     O tempo foi se passando. A sua preocupação aumentava, à proporção que a sonhada gravidez não ocorria.

     Após cinco anos de casados, eu os conheci. Ele me procurou para fazer uma política de boa vizinhança, vez que minha mulher era dentista e lhe poderia causar embaraços à sua profissão.

     Ele era bem falante, muito agradável, e nos proporcionava mimos como coco verde, galinha caipira e coisinhas mais, até mesmo almoço na casa dos sogros. Terminamos marcando uma viagem para acamparmos à beira de um regato entre Porto Seguro e Santa Cruz de Cabrália, lá para os lados de Taperapuan.

 

     Nessa viagem, nesse acampamento, o casal preferiu dormir na caminhonete. Aí foi concretizado o seu sonho. A moça ficou grávida.

     Os gastos do casal eram acentuados para o padrão do velho provedor. O dinheiro sonhado não corria franco. 0 descontentamento, de ambas as partes, se tornava mais evidente.

     Mudei de cidade, e perdemos o contato.

     Após cinco anos, eu estava numa área, quando encontro um casal maltrapilho. Ele descalço e barbudo, com higiene a desejar, e ela com cabelos compridos, soltos e desalinhados, com o vestido de chita chegando até os pés. Era a imagem de um casal de hippie. Suspeitei que estivesse usando e comprando drogas, talvez para revender. Estranhei que não nos tivesse procurado. Pus a nossa casa à sua disposição para comentarmos as estórias de antanho, tomar um banho, jantar, descansar, mas não apareceu.

     Muitos anos se passaram.

     Com as reminiscências afloradas, passei a procurar notícias daquele casal.

     Soube que o rapaz fora assassinado após uma luta corporal, num local ermo, por questões pouco esclarecidas.

     Na "homenagem" a mim, prestada pelo amigo William, não continha o adágio: "a sabedoria, quando é muita, vira bicho e come o dono".

     Nosso personagem fora vítima de muita sabedoria.

 

Texto extraÍdo do livro Estórias de Todo Dia de autoria de

 Fernando Machado Couto, médico e escritor

 

 

 

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