A sociedade eficaz
Estando de passagem por Bagdá e como só poderia partir dois
dias depois, nada tendo a fazer, resolvi, a convite de um companheiro de
viagem, assistir a um leilão público. Estavam sendo levados a leilão os bens de
uma firma. Segundo informara o dono do hotel onde nos hospedávamos, os sócios
da referida forma eram cultos e inteligentes mas não se completavam na direção.
Ao contrário, ambos queriam dirigir e dar ordens, mas divergiam justamente só
sabiam fazer a mesma coisa – ocupar o melhor lugar. A firma desaprumou-se.
Caiu.
Lembrei-me então de
Soralah, minha terra natal.
Havia em Soralah,
como aliás é comum em todas as nossas cidades, uma grande praça onde se
concentravam os feirantes. Realizava-se ali uma grande feira semanal, mas
diariamente havia muitas barracas e movimento suficiente para alimentar o
comércio local e adjacente à cidade. Bazares, mercadorias, armazéns cercavam a
praça e, no seu interior, barracas e barraquins, ovelhas, jumentos, camelos,
gente a comprar, a vender, a falar, a reclamar, a solicitar, a insistir, a
arrumar, a desarrumar, a carregar, a descarregar, numa mistura de sons diversos
de objetos, de animais, e de gente, a encher todo o ambiente de ruídos,
bulícios, estrondos, vozerios, num zumbar confuso e sui generis.
Era assim no dia
da feira semanal. De longe já se identificava a zoeira. Para ela acorriam todos
os interessados, uns a comprar, outros a vender e outros mais a alugar os seus
serviços braçais, além de gatunos, rameiras e mendigos. Entre esses últimos,
havia um paralítico franzino, que ocupava, com as suas perninhas secas, um
canto da praça ao lado da mesquita. Do outro lado da praça estava estabelecido,
com seu peditório, um cego.
Certa vez, um
alcaide, atendendo reclamações do comércio, resolveu ordenar a distribuição das
barracas e feirantes na intenção de melhorar o caos existente. Barracas de
quinquilharias aqui, verduras acolá, carne naquele lado, frutas mais além, etc.
Até os mendigos tiveram marcado o seu lugar no peditório. Assim se conheceram o
paralítico e o cego, pois ficaram juntos. Da proximidade nasceu a intimidade.
Conversaram e trocaram queixas. O paralítico a se queixar que pagava três
moedas só para o conduzirem para casa ou desta para a feira. Tudo que precisava
comprar pagava a outrem para fazê-lo. Em casa havia de pagar alguém para
conduzi-lo daqui para ali. O cego, semelhantemente, por motivo diferente, a se
queixar das mesmas necessidades.
Conversa vai, conversa vem, ao cabo de poucos dias, um deles
sugeriu uma associação. O cego, homem de bom físico, carregaria o chochinho
paralítico em seus ombros. Este, por sua vez, de cima ia orientando aquele pelo
caminho. Iriam morar numa mesma barraca. O paralítico sabia cozinhar. Em casa,
cego não precisa de ajuda para achar as coisas e podia conduzir o paralítico
conforme o necessário.
Fizeram as contas, economizariam juntos um total de 28 moedas
diariamente. Assim fizeram. Deu certo.
Em breve deixaram o
barraco por uma casa e podiam, sendo inúteis para o trabalho, viver tão bem
quanto os sãos e até melhor do que muitos.
Como se vê, uma
sociedade feita entre um cego e um paralítico pode dar resultados
satisfatórios, se, de cada sócio, forem aproveitadas as suas virtudes e não os
seus defeitos.
É uma pena que
muitos não saibam aproveitar as graças concedidas por Alah e prefiram associar
mais os seus defeitos do que as suas virtudes.
Texto extraído do livro Histórias do Viajante Narum (4ª edição ampliada
de Mala de Viajante) de autoria de José Lemos de Sant’ Ana
Médico, Empresário, Escritor.
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