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Agruras de um médico no meio do mundo

Itanhém é uma cidade que foi desmembrada de Alcobaça “recentemente”. Inicialmente, um povoado feito por desbravadores vindos de Minas através dos vales dos rios, sobretudo o Jequitinhonha e o Mucuri. A floresta era luxuriante. A exuberância da mata atlântica se expressava pela madeira de lei da mais alta qualidade, como jacarandás, sucupiras, paus d’arco, cedros, copaíbas etc , etc, bem como pela fauna exuberante: onças, queixadas, caititus, lontras, tatus, macacos os mais diversos. A chuva, copiosa, fazia de cada córrego um rancho perene.

Os desbravadores demarcavam uma área e dela se apossavam, tirando a madeira e com ela fazendo casas e cercas. Como não havia dinheiro, as cercas eram feitas com grandes toras de madeira postas ao chão ou sobre alguns tocos e sobre elas um X também de madeiras, e sobre o ângulo superior do X uma nova tora de madeira. Ao desmatar e tocar fogo, o capim-colonião brotava sem necessidade de plantio. Muitos desses aventureiros se tornaram grandes fazendeiros dessa nova área entregue a civilização.

Até então, o Paraná era o polo madeireiro nacional. Com o desmatamento, surgiram as cidades de Londrina, Cascavel e outras. Em Santa Catarina, surgiram Blumenau, Joinville, dentre outras. Aquelas terras foram incorporadas à lavoura cafeeira.

Nos anos cinquenta e sessenta, os madeireiros, iguais às formigas, não tendo mais o que cortar no Paraná, passaram a cortar as matas do norte do Espirito Santo, do norte de Minas e do sul da Bahia. No Espirito Santo, surgiram as localidades de Linhares, S. Mateus, Mantena e outras. Em Minas, Nanuque, Carlos Chagas, Águas Formosas, Jequitinhonha, Rio do Prado e outras. No sul da Bahia, surgiram Medeiros Neto, Itanhém, Ibirapuã, Itamaraju, Itabela, Eunápolis, e todas as cidades do sul – exceto aquelas do litoral – que existiam desde o descobrimento ou a partir do inicio do período colonial.

As estradas eram feitas pelos madeireiros para a retirada da madeira. A maioria delas mantem o traçado original.

Os núcleos iniciais eram casas de posseiros e acampamento de madeireiros. Juntos, eles começaram o povoamento.

É desnecessário dizer que quem ia para um local daqueles eram pessoas aventureiras, de baixo nível econômico, cultural e social. Assim, juntaram-se facínoras, perseguidos da justiça, prostitutas e toda classe de gente que não tinha vez no mundo civilizado. Os crimes aconteciam, constantemente, por motivos fúteis e variados. A ênfase era dada pela posse da terra. Com o decorrer do tempo, as notícias se espalhavam, e já começaram a aparecer os primeiros negociantes, os primeiros professores, os primeiros soldados, os primeiros funcionários públicos, os primeiros de tudo. Tudo era o primeiro.

A civilização já estava chegando. No entanto não havia luz elétrica pública. As poucas casas que a possuíam recebiam-na por meio de um “gato”, liberado pelo único posto de gasolina, que funcionava das seis às dez horas da noite. Não havia água encanada, sendo esta retirada de poços artesianos por bombas manuais. Havia até o ofício de batedor de bombas. Este batia, manualmente, a bomba, enchendo o tanque; ia de casa em casa, desde as primeiras horas da manhã. O pagamento era mensal.

Não havia telefone. Escutávamos rádio, melhor ouvido à noite. Não havia jornal. A televisão tinha imagens pretas e brancas, acentuadamente chuviscadas, trazidas, por um sinal inconstante, de Nanuque ou de Vitória, através de antenas repetidoras.

Os três principais bares da cidade, Bambara, Danúbio Azul e Bola Branca, tinham motores próprios de competiam pela oferta de cerveja mais gelada. No bar Bola Branca, o mais central, se a cerveja não estivesse gelada por alguma razão, a garrafa era amarrada pelo gargalo e imersa na salmoura existente para fabricação de picolés. Dentro de instantes, bebia-se na temperatura ideal.

Não havia pavimentação nas estradas, e aquela da cidade era precária. A lama, quando chovia, era pegajosa e se espalhava em todo canto. O solado dos sapatos ia se enchendo com camadas de barro cada vez maiores. Na entrada de todas as casas, existiam dispositivos capazes de raspar a lama dos sapatos. Mesmo assim, era um costume local a visita retirar os sapatos quando entrasse em alguma casa, ficando com os pés descalços.

Passei a usar galochas, envoltórios de látex para os sapatos. Com as chuvas cada vez menos abundantes, talvez, tais dispositivos nem existam mais.

Entre os presos da delegacia, estava João Bocão, famoso matador. Ele era temido por todos, a começar pela simples pronúncia do seu nome. Quando ele adoecia, dois soldados o levavam para o Posto de Saúde para uma consulta comigo. Como eu queria preservar o segredo médico, o atendia com os soldados do lado de fora do consultório. Eu o tratava com a maior delicadeza possível, temendo alguma má ação. João Bocão tinha vários problemas de saúde. As receitas eram encaminhadas para a Prefeitura comprar os remédios. Foram vários remédios. Foram vários atendimentos.

Num belo dia, aproveitando-se do bom comportamento, ainda hoje em moda, João Bocão fugiu.

Foi acionado o Batalhão de Polícia de Teixeira de Freitas. A cidade se encheu de soldados que caçavam o fugitivo de maneira exaustiva, em todos os cantos. A população estava em polvorosa.

Dois dias após, caçado como um cão raivoso, sem onde se esconder, sem ter guarida, João Bocão foi encontrado pendurado pelo pescoço por uma corda, na cumeeira de uma tosca casa no meio do mato.

Como era costumeiro, fui fazer o levantamento cadavérico. A cidade se aquietou.

No dia seguinte, à tardinha, no happy hour, como a cerveja não estivesse devidamente gelada, Peninha, um colega da república dos bancários, onde morávamos, pediu a Adãozinho, o dono do Bar Bola Branca, uma cerveja “a la João Bocão” – aquela presa pelo gargalo e imersa na salmoura do balcão da sorveteria para gelar rapidamente.

A ideia foi tida como criativa e passou a fazer parte do trivial.

Texto extraído do livro Estórias de Todo Dia, de autoria de  Fernando Machado Couto. Médico, Escritor

Contato para aquisição do livro: Thyana Tel.: 071.9 9120.9337

(Postagem ou motoboy)

Texto digitado por Luzanira Fernandes


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