Imperfeições
ESTAVA
A SABOREAR O MEU CAFÉ NO CAFÉ ORIENTE, QUANDO presenciei uma discussão entre
dois prepostos da Cobrança Legal de Soralah, discussão que se acalorava e já
era apreciada por uma grande roda de comerciantes. Um dos prepostos advertia o
outro sobre o grave engano por este cometido e que, segundo suas palavras, o
fazia praticar uma grande injustiça, com sérios prejuízos a determinada firma.
Segundo o que pude entender da discussão, o Preposto da Cobrança Legal teria
autuado uma importante firma numa alta quantia, baseado num erro de
contabilidade.
- Ora – afirmava um deles – os impostos
foram todos pagos certos; aliás foram pagos a mais.
- Mais – retrucava o outro – na escrita eu
constatei que ele deixara de recolher dez mil dinares de impostos.
- Ora, mas você mesmo não verificou que
ele, ao invés de se creditar, se debitou naquela grande partida de mercadoria,
recolhendo assim, a mais e antecipadamente, impostos que ele não devia? O caso
dele é, ao contrário, de receber de volta impostos que recolheu a mais.
- Eu sigo a Lei e a escrituração contábil.
Se ele errou ao escriturar a culpa é dele, portanto que pague o seu erro.
- Não são essas as recomendações da Grande
Câmara Comercial, conforme as sugestões do nosso glorioso Califa Adman – Alah o
conserve! – Segundo as recomendações oficiais nós devemos nos ater, à letra dos
Códigos, mas ao seu espírito; e, no caso, qualquer contador verifica que houve
um erro de escrituração, embora estreia claro que o imposto foi recolhido – e
de sobejo – e a firma se houve com toda lisura...
Tive que sair e não presenciei o restante
da discussão. No dia seguinte, era este o fato mais comentado nos meios
comerciais e, numa roda de amigos, ouvi de um deles um fato semelhante mas em
outra seara. Dizia este amigo que na sua residência – ele reside num conjunto
de casas interligadas em condomínio – ele sofreu, assim como a maioria dos condôminos,
durante todo em ano de mandato do “inquilino-chefe”. Contou-nos que, anualmente, entre as vinte famílias
residentes, elege-se um dos chefes de família como “inquilino-chefe”. A esse,
cabe a responsabilidade da administração geral do conjunto residencial. Normalmente
reúne-se uma Assembleia anual a mesma recebendo a prestação de contas do ano
transato e elegendo ou reelegendo o “inquilino-chefe” do ano que se inicia.
Pois bem, o ano passado o nosso “inquilino-chefe” convidou os moradores para,
exatamente, vinte assembleias. Qualquer probleminha que lhe surgia ele
convocava uma assembleia. Faltava-lhe iniciativa para deliberar, por si mesmo
dentro dos poderes gerais que lhe tinham sido conferidos com eleição. E o que é
pior – Mak Alah! – exigia cartão de identificação de cada condômino para poder
votar!
-Não é possível – disse-lhe alguém.
-Pois é estavam, diante dele, vinte
pessoas suas conhecidas e conhecidas entre si, mas sem o cartão de
identificação ele não permitia opinar.
-Será que ele é maluco e vocês não sabem?
-Não é. É a própria imperfeição humana –
só Alah é perfeito – que atinge indistintamente a todos. O referido
“inquilino-chefe”, como amigo e como pessoa, no trato quotidiano é agradável.
Mas só viemos a saber desse seu aferro ao protocolo burocrático quando lhe
entregamos o cargo. Nunca mais! Custou-me, e aos meus vizinhos – Alan é
testemunha – muitas horas de trabalho e aborrecimentos.
É uma lástima que, além dos afazeres
obrigatórios, ainda sejamos sobrecarregados de mais cuidados e ocupações, por
força das interpretações errôneas ou da mesquinhez de espíritos tacanhos.
Felizmente Alah – só ele é grande e generoso – tudo vê e tudo pode prover.
Texto extraído do livro Histórias do Viajante Narum (4ª edição ampliada
de Mala de Viajante) de autoria de José Lemos de Sant’ Ana
Médico, Empresário, Escritor.
Texto digitado por Luzanira Fernandes
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