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Impostura

     MOSSUL FOI TRADICIONALMENTE CONSIDERADA COMO A CIDADE- modelo em questões de Jurisprudência. No foro local conviviam o amor à justiça e o respeito à lei. A conduta ilibada dos Cádis era ponto de honra e se transmitia já há séculos de uma geração a outra. Muitos califas de outras cidades, em questões mais complexas, solicitavam a opinião dos magistrados de Mossul, antes de decidir através de seus próprios tribunais. Desse modo, os tribunais de Mossul adquiriram uma certa proeminência em relação aos tribunais de outras cidades do Islã, não como um tribunal de apelação, mas como exemplo ao firmar jurisprudências. Os Cádis de Mossul quando de visita ou passagem por outras cidades eram recebidos debaixo da maior consideração e respeito.

     Como porém nada, exceto Alah poderoso, é perfeito, sob a sombra da fama e da glória dos magistrados de Mossul, alguns hipócritas se refrescavam, muito poucos certamente, tão poucos que não davam para empanar o brilho da classe. Até nas roupas e no modo de se conduzir nas ruas se distinguiram, em Mossul, os Cádis, das outras pessoas – sentiam-se tão imbuídos dos sãos princípios que defendiam que essa convicção se projetava na própria aparência física: eram solenes, circunspectos, atenciosos, cuidadosos no andar, no falar e até no vestuário. Por isso, um ou outro elemento pouco digno, dissimulando-se sob a aparência que identificava, à primeira vista, um Cádi, na verdade, se conduzia realmente de maneira pouco digna a qualquer pessoa e muito menos a um magistrado. Esses menos dignos elementos, protegidos com o valoroso escudo da respeitada classe, exploravam aqui ou ali vantagens pessoais, como foi o caso do Cádi Micai Solin.

     Conta-se que o referido magistrado residia em casa pertencente a um ignorante e bondoso homem chamado Hugan Bem Zanur. Este, como acontece com as pessoas simples, não só respeitava como temia as autoridades e sentia-se honradíssimo e até mais seguro, em ter um Cádi como seu inquilino e isso o dizia, com um misto de orgulho, vaidade e satisfação, aos seus amigos. Aconteceu porém que o Cádi se dizia sempre ocupado e não o atendia, quando ele o procurava para receber o aluguel. Hugan já não tinha coragem de procurar o prestigioso inquilino, com receio de ofendê-lo. A princípio, nos primeiros meses, ele insistiu na cobrança, recebendo, ao invés de pagamento, respostas, da empregada que o atendia à porta, como estas: “ele está descansando, não pode atender agora” – “ele saiu”, “está jantando” – “venha na outra semana” e outras desculpas semelhantes.

     Certa vez, preferiu ir ao próprio tribunal. Lá, a um canto, aguardou toda uma tarde, enquanto o ilustre Cádi proferia uma sábia sentença, precedida de um escorreito e bem fundamentado  arrazoado. Terminada a cerimônia e quando todos se retiravam, aproximou-se humildemente do magistrado e disse-lhe:

     - Meritíssimo, rogo a vossa ilustre pessoa que me socorra, pagando alguns meses dos dezoito meses atrasados do aluguel, pois já estou passando apertos.

     O Cádi, mirando-o firmemente, respondeu:

     - O senhor certamente não sabe que esta sala é sagrada, e comete desrespeito ao me falar deste modo aqui. Queria se retirar.

     O pobre homem, humilhado e temeroso, retirou-se. Passaram-se vários anos mais sem que conseguisse receber aluguel. Certo dia tomou uma decisão. Foi a um cartório e mandou passar a propriedade para o nome do Cádi. De posse da escritura procurou o referido em sua casa. Apesar das informações de que não poderia ser atendido, insistiu declarando que sua porta não sairia sem antes lhe ter falado. Como o devedor relapso precisava sair, resolveu recebe-lo e ao fazê-lo avisou:

    - Diga o que quer imediatamente, pois preciso sair.

     - Meritíssimo – disse o humilde locador – venho pedir a Vossa Excelência um grande favor.

     - Que favor? – perguntava o outro já disposto a repelir o pedido.

     - Venho pedir a V. Excia. para aceitar a escritura dessa casa. Mandei passa-la no nome de V. Excia. e peço que aceite.

     Dito isso, passou-lhe a escritura. O Cádi recebeu, conferiu e disse:

     - Bem, se é só isso que o senhor quer, aceito.

     - Obrigado. Ao menos doravante não vou pagar impostos.

     E saiu o pobre homem, satisfeito, pois se livrara de um negócio que só lhe trazia dispêndio.

     Louvado seja Alah que pode dar alegria aos pobres de espírito.

Texto extraído do livro Histórias de Viajante Narum

Autor: José Lemos de Sant'Ana médico, escritor.




 

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