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MEDO

Quando eu era menino havia, em Salvador, a “carrocinha” dos meninos e a “carrocinha” dos cachorros. Não me lembro de ter visto a “carrocinha” dos meninos em atividade, mas lembro de tê-la visto passar, apontada por alguém e eu com um medo danado. Dizia-se que a “carrocinha” pegava não só meninos mas também rapazes e também moças, se fossem vistos fazendo coisas feias na rua, o que na minha imaginação enfeixava uma série de atos, de pedrada em vidraça e outras molecagens até roubos e outras maldades, inclusive “imoralidade”. Não é que eu jugasse capaz de fazer quaisquer desses atos, é que, pela rua, no caminho da escola, no caminho da missa ou de um passeio qualquer, ou mesmo brincando no passeio de casa, vi muito menino praticando molecagens, várias, de nome feio até pedrada nas vidraças, e eu, estando por perto, poderia ser confundido com um deles e ser levado pela carrocinha. Aliás, uma das coisas que eu notei já em criança é que os “arruaceiros” procuram, normalmente, lançar outras pessoas na prática que têm em vista. Eles agem sempre convictos de que estão certos e com razão, e procuram convencer outros com a sua idéia, de modo que sempre contam com um ou mais colaboradores. E como são hábeis em desaparecer do local após o delito! De modo que, se, de acordo com as recomendações de mamãe, logo notado qualquer elemento desse tipo, eu me deveria afastar do local, o medo da carrocinha mais depressa me fazia cumprir essa determinação, que o pessoal da “carrocinha” se chegasse ali naquela hora, não saberia quem era e quem não era. Já a “carrocinha” dos cachorros vi atuar várias vezes, com aqueles homens com um laço de arame na ponta de uma vara curta e forte. Embora eu tivesse um medo danado de cachorro, ficava com uma pena terrível quando via um esperneando e ganindo preso pelo laço. De cá via a “carrocinha” cheia de cães de tudo quanto tamanho e cor. Dizia-se que iriam ser mortos para fazer sabão. Como disse, eu tinha um medo danado de cachorro. Não tanto dos vira-latas de rua, estes, geralmente, bastava passar afastados deles. Não assim aqueles de algumas residências, que vinham de lá de dentro pra cima da gente no passeio, com uma valentia danada. Quantas vezes me assustei com um cachorro existente na casa da esquina da Rua da Independência com a Joana Angélica, à direita de quem sai da Independência! A casa tinha um jardim na frente e um muro gradeado, de modo que, inesperadamente, ele rosnava bem em cima de quem calmamente ia passando encostado ao gradeado. Imagine-se porém o que seria para mim ter que ir a uma cocheira à noite, levar um recado de papai ao dono da cocheira! Várias vezes fui a uma cocheira que existia no vale, entre a Rua do Jogo do Carneiro e o Parque de Nazaré, e cuja entrada era mais ou menos na altura onde hoje a Rua Júlio Barbuda dobra em cotovelo. Ali existia um portão. Dali eu gritava pra prenderem o cachorro, mas penso que ninguém ouvia lá embaixo e eu teria que ir de qualquer jeito, pois recado de papai era pra ser dado. Ia eu numa escuridão medonha, pelo caminho estreito, mal vendo, longe, a luzinha da casa do dono da roça, o coração batendo forte. Mas eu ia descendo e gritando: prenda o cachorro! Alguém respondia e eu me acalmava. Não só naquela roça. Pior é quando ia levar recado na Lucaia, a “seu Aloísio do pé doente”. Aí o caminho a percorrer, subindo nos caminhos de barro, dentro do capim, era bem maior. E isso de noite. A mesma encenação, os mesmos gritos, o medo danado. Mas eu tinha também medo de cavalaria, que aliás nunca vi em atividade, mas somente pelo que me contavam outros meninos, certamente conhecedores do assunto. Houve tempo em que andei com medo do vampiro, de quem muito se falou aí pelos anos trinta, e de pedrada de maluco. É, naqueles tempos parece que havia mais malucos pelas ruas. Pode ser até que não houvesse mais malucos do que hoje, mas, ao menos, os malucos eram mais identificados, mais conhecidos: não era como hoje, quando pode até a rua estar cheia de malucos e ninguém sabe porque não conhece. Não assim naqueles tempos, quando os malucos eram perfeitamente conhecidos e, se algum chegante na rua ou no bairro não conhecesse, passava a conhece-lo ligeiro, que a meninada mexia com o maluco desde a entrada até a saída da rua. Era o maluco passar e o primeiro menino que o visse largava o apelido, frase ou assovio provocador. O pobre coitado passava a “geral” de ponta a ponta da rua, enquanto transitava, recebendo os apôdos e xingando a mãe de cada um, em resposta. Quando não saía pedrada. Aliás, havia malucos que já andavam com os bolsos e as mãos, com pedras. O que eu temia muito. Quantas vezes ia passando sossegado no caminho do colégio e assisti o maluco revidando a pedrada os apôdos recebidos! Imagine o meu medo! Se ele pensasse que era eu um dos moleques! Não sei se hoje ainda tem disso, mas naquele tempo, se, indo no meu caminho avistasse adiante, um grupo de meninos desconhecidos, passava logo para o outro lado da rua ou até desviava por outra rua, pois menino desconhecido encontrado assim um ou dois andando, não tinha importância, as se estivesse em grupo, cuidado que ia haver provocação. E eles baixavam o pau, de lascar! Tudo isso aí, porém, é medo de gente que a gente está vendo. Até aí muito bem, pois pode-se correr e pode-se até revidar. Mas o medo de “alma”, desse eu não conseguia me livrar. Esse negócio de defunto, cemitério e escuridão, ninguém se livra revidando e, às vezes, nem correndo, pois, pelo que ouvi outros contarem, quando corre aí é que a “alma” agarra o camarada por detrás. Já contei em outra oportunidade que eu assistia, mensalmente, cinema, dentro do Convento de São Francisco. Na ocasião eu fazia parte da Sociedade Aloisiana de Frei Gaudêncio. Para as reuniões, nós entrávamos no convento pela porta, no fundo da nave, à direita de quem entra. Nesta porta existia uma placa, onde estava escrito clausura. Mas, para o cinema, não sei se era porque entravam também mulheres, era um caminho mais curto para a sala de projeção: através do ossuário existente logo após a porta à esquerda do fundo da nave. A sala de projeção tinha sua entrada perto da sala do ossuário, de modo que, atravessando este, quase que não se passava por dentro do convento para ir ao cineminha. Mas aí é que está a história. Aquele ossuário me fazia ficar todo arrepiado só em atravessá-lo, mesmo acompanhado por outras pessoas. Além desses, medos, outros: medo de não saber a lição, medo de “perder o ano” no colégio, medo da cafua. Benditos medos que me fizeram estudar e cumprir as obrigações...     

Texto extraído do livro Bambangas (Volume II) de autoria de José Lemos de Sant’ Ana . Médico, Empresário, Escritor.

Texto digitado por Luzanira Fernandes

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