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O Galo de El Daba

 

     CERTA VEZ, INDO DE BAGDAD ATÉ RAS-EL-AM, ACOMPANHANDO grande caravana, foi meu companheiro de viagem um homem singular. Hama Goçak – esse o seu nome – tinha o hábito de apresentar sempre comparações, por sinal muito judiciosas e felizes, a propósito de situações ou fatos comentados. Como a nossa viagem durou muitos dias e muitas noites, ouvi e contei muitas histórias e fatos da vida.

     Nessa caravana também viajava um senhor cujo nome me escapa, e que, numa das noites em que acampamos no Oásis de Julnegi, muito depois das últimas orações da tarde, estando já repousando e prosando em nossas almofadas, nos contou parte de sua vida atribulada. Contou-nos que nascera em berço de ouro na cidade de Trynasan, perto da embocadura do Eufrates. Seu pai – Alah o tenha consigo! – fora um grande mercador, cujas caravanas trilhavam desde Trynasan até Alexandria, no Mediterrâneo, e até Aden, no Mar da Arábia, cruzando assim totalmente os grandes desertos de Nefud e de Dahna.

     Enquanto seu pai vivera, a sua vida era sem preocupações. Aos 25 anos já se lhe associara. Na verdade não cumpria as suas obrigações como seu pai desejaria. Mas não havia necessidade de fazê-lo. Em tudo era obedecido pelos funcionários.

     _ Era fácil, tão fácil... Bastava dar as determinações e podia me retirar. No dia seguinte estava tudo feito conforme determinações e podia me retirar. No dia seguinte estava tudo feito conforme determinara. Qualquer dúvida, consultava o velho.

     _ E seu pai continuava trabalhando?

      _ Demais! Realmente eu não via por que havia de meu pai estar diariamente, de manhã à noite, fiscalizando, ordenando conferindo, reclamando! Será, pensava eu, que é um hábito já arraigado ou uma mania do velho?!

     Após uma pausa, prosseguiu a sua narrativa:

     _ Os tempos se passaram. No negócio não precisava esforço e lhe dedicava muito pouco tempo, o qual me sobrava para ócios e loucuras da juventude. Lá um dia – e só Alah determina esse dia para cada um -, meu pai faleceu. Assumi imediatamente a direção. Resolvi passar mais tempo no negócio, mas não senti necessidade de dedicar-me como meu pai, pois as minhas determinações eram cumpridas imediatamente. Bem... assim me pareceu...

     E suspirou longamente antes de prosseguir:

     _ Certa noite, fui acordado pelos gritos de meu mordomo que batia fortemente na porta do meu quarto e me comunicava ter chegado de Meca um dos nossos cameleiros, com a notícia de que o caravaneiro vendera toda mercadoria e os sessenta camelos condutores em Ar Taif, dizendo que assim o fazia por ordem do patrão. E que também pagara e dispensara, os arrieiros, condutores e cameleiros e arribara. Ele se apressara, desconfiado, a comunicar ao patrão. Este foi o primeiro golpe, logo seguido de outros. Mercadoria estragada, ataques de bandidos no deserto, tempestades de areia. Eu dava ordens ainda, mas, muito tarde, verifiquei que, na verdade, não eram cumpridas. Afinal, perdi tudo...

     E olhando a lua que nascia, cofiou a barba com brandura e depois com energia, crispando a mão, como se recordasse com ódio. E prosseguiu:

     _ No princípio, eu pensei que tudo saía certo porque tinha autoridade sobre os meus funcionários. Depois, verifiquei que eu não tinha nem autoridade, nem capacidade. Foi-se tudo.

     Um longo silêncio seguiu-se às suas últimas palavras, só interrompido pela voz de Hama Goçak que assim falou:

     _ A sua história faz-me lembrar o galo de El-Daba. Conta-se em El-Daba que havia um galo muito madrugador que cantava seguidamente até o sol nascer. Um dia o galo acordou tarde e o sol já houvera nascido. O galo entristeceu até morrer, porque descobrira que de nada adiantava o seu canto para o sol nascer. O sol para o galo, como os negócios para o senhor; seguiam o seu curso, independente do canto daquele ou das suas ordens. Às vezes só se acorda tarde para descobrir estas coisas.

     Já era noite avançada, precisávamos acordar cedo. Tratamos de dormir.

     Só Alah sabe o que está escrito no livro do destino.


Texto extraído do livro HISTÓRIAS DO VIAJANTE NARUM, de autoria de José Lemos de Sant'Ana, médico, empresário e escritor

                                                                                                                                                                                   Digitado por Luzanira Fernandes



 

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