O valente
Chegou na cidadezinha de Pedras Altas numa chuva antiga. Em
boa sela e melhor estribo veio ele. Falava pelo canto da boca – do outro lado a
brasa do seu charuto espiava o mundo. No Hotel Chic, tirando uma alentada e
pesada garrucha, deu nome e patente:
- Sou o Capitão Querino Dias.
Mandou que arrumassem seu baú de viagem dentro do maior
cuidado.
- É tudo munição, coisa de muita responsabilidade.
A cidadezinha de
Pedras Altas viu logo que estava diante de um pistoleiro de marca. E isso ganhou
raiz quando um tropeiro, indo ao Hotel Chic levar encomenda de boca, espalhou
que o sujeitão do charuto era um perseguido da justiça, que matava pelo
gosto de ver de que lado o cristão caía:
- Vou simbora, que esse Capitão é o capeta.
E foi. Atras da poeira do tropeiro a fama de Quirino Dias
cresceu. No Hotel Chic o melhor prato era para
seu dente, o melhor doce era para sua língua. De tarde, em cadeira de
palhinha, o capitão montava a sua pessoa na porta da rua. Pedras Altas passava
por ele de cabeça baixa, acanhada, fazendo questão de salvar o pistoleiro. E no
dia em que bebeu cachaça, com pólvora, na vista de todo o Hotel Chic, então não
teve mais tamanho a sua fama. Bebeu e disse:
- Tenho trabalho longe. Só volto na semana entrante.
No quarto, remexeu o baú, limpou a garrucha e sumiu nas patas
do seu brasino. O povo comentou:
- É viagem de tocaia.
Foi e voltou dentro do tempo estipulado. De novo montou seu
charuto na porta do Hotel Chic. Com o rolar dos dias, o capitão ficou mais
exigente. Uma tarde, como não apreciasse o canto choco de certo galo-capão, foi
no quarto, mexeu no baú e despejou dois tiros no infeliz. Fez o mesmo com um
bem-te-vi que gozava as tardes fagueiras em galho de jaqueira. Desde essa
precisa hora em diante, toda a vez que o capitão ameaçava recorrer ao baú,
Pedras Altas tremia:
- Capitão, não faça isso, capitão, tenha dó.
A bem dizer, a cidadezinha era dele. Seus pedidos de dinheiro
corriam nas pernas dos moleques de leva-e-traz. E era quem mais queria municiar
o capitão, com medo que recorresse ao baú. Ele mesmo dizia pelo canto
desocupado da boca:
- Não abro aquela peça sem ganho.
Aconteceu, então, o caso da onça. A notícia veio ligeira e
ligeira parou no Hotel Chic. A pintada fazia e acontecia, comia bezerro com
casco e tudo. O recadeiro mediu o tamanho da bichona:
- É de porte alentado, para mais de duzentas arrobas.
Pedras Altas riu da onça, da desgraça da onça. Tanto pasto
para vadiar e logo onde veio a pobre tirar carta de brabeza! Em Pedras Altas do
Capitão Querino Dias! Pepito Rosa, dono de um comercinho de cachaça, riu da
pouca sorte da onça:
- Vai ser azarada assim na casa dos capetas.
Uma embaixada de coronéis, com todos os seus pertences, na
mesma tarde foi pedir a Quirino Dias providências contra a onça. Logo na
abertura da conversa o capitão arregalou arregalou os olhos e gritou:
- Onça? Está dando onça em Pedras Altas? Socorro! Quero lá
saber disso!
E a cidade inteira viu assombrada, de queixo caído o pistoleiro sumir de ladrão, fugindo nos cascos de seu cavalo. Nem teve tempo de levar o baú, uma peça de folha onde o capitão guardava suas bugigangas – pentes, rendinhas,, frascos de cheiro, alfinetes e águas de moça. Quirini Dias era caixeiro viajante.
Texto extraído do livro Antologia Escolar de Crônicas / Clássicos Brasileiros
Organizado por Herberto Sales
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