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Pistolões

Meu sogro, José Dias Larangeira, contou-me que, quando terceiranista de engenharia, sentiu a necessidade de um emprego com que logo se iniciar na prática da futura e próxima profissão e auferir algum ganho. Estando de férias no sertão, foi apresentado pelo Cônego Bastos ao Dr. Deocleciano Pires Teixeira, em Caetité, homem de larga influência política. Este lhe deu uma carta endereçada ao Senador Luiz Viana - não é o filho nem o neto, bem se vê, mas o velho Conselheiro Luiz Viana - e, com esta no bolso, voltou para suas aulas em Salvador. Verificou que o Senador estava no Rio e aguardou a sua chegada. Sabia que ele se hospedava no Hotel Sul Americano, na Ladeira do S. Bento. De vez em quanto procurava informações, carta sempre no bolso para não perder a oportunidade. Lá um dia, tomando o bonde que descia a rua Direita do Palácio (Rua Chile) na direção do Largo do Teatro (Praça Castro Alves), nele estava o Senador Luiz Viana. Sentou-se alguns bancos atrás a observar quando ele saltaria. Após a subida do S. Bento - não havia ponto de parada na ladeira - o bonde parou em cima no São Pedro e aí saltou o Conselheiro. Saltou também o rapazinho e o foi acompanhando. Desceram a ladeira de S. Bento, na direção do Hotel Sul Americano, em cujo salão de entrada sentou-se o político. O José Dias Larangeira aproximou-se e entregou-lhe a carta, Logo ao ver o subscrito do envelope, foi dizendo Luiz Viana:

- É de Deocleciano...

Conversou ligeiramente no hábito dos "como vai ele", "quem é , "você é de lá?" etc. e a seguir levantou-se dizendo ao rapaz:

- Espere aqui que eu vou trocar de roupa, ler a carta e volto pra lhe falar.

O pretendente esperou com grande prazer. Na carta que trouxera estava bem clara a pretensão: uma colocação no serviço das Obras do Porto.

Após um certo tempo, voltou o Senador já de roupa mudada e deu ao rapaz um cartão dirigido ao Engo. Paes Leme, chefe do referido serviço e com escritório localizado na parte baixa do plano inclinado naquele mesmo andar que foi, posteriormente e durante muito tempo, ocupado por Agnelo Brito, representante dos fósforos de segurança. Para lá se dirigiu em seguida e, após uma longa espera pôde passar o cartão às mãos do engenheiro. Este tratou-o muito bem e marcou determinado dia da semana seguinte para começar a trabalhar. Saiu dali encantado e jubiloso. Não avaliava antes que seria tão fácil. Um cartão do Senador e Conselheiro Luiz Viana para qualquer serviço na Bahia era como se fosse uma determinação, dada a união política existente entre este e o Governador Seabra. Aconteceu porém que nos próximos dias deu-se o "rompimento" - esta palavra esta ai entre aspas por estar sendo usada no seu significado político - entre Governador e Conselheiro, e quando o rapazinho se apresentou, no dia combinado, no escritório do Dr. Paes Leme, já este estava com outra cara. Demorou de atendê-lo e quando o fez foi para perguntar:

- O senhor não leu nos jornais o "rompimento" entre o Dr. Seabra e o Senador Luiz Viana?!

-Li...

-Então, rapaz, não posso mais nomeá-lo!

Voltou o rapaz desencantado e triste...

O pistolão parece que é uma instituição universal e histórica. Leia-se a História, e até a Bíblia, e lá estão os preferidos, os protegidos, os empistolados em todos os tempos e lugares. Faz parte da natureza humana dar preferência, diante de igualdade de condições, ao que mais agrada, mais convém ou mais obriga a amizade.

Só que, como em tudo o mais, nem sempre as coisas se desenvolvem tão maciamente.

Às vezes são preteridos bons candidatos por força do prestígio de algum empistolado menos competente. Penso que no seu quarto livro de memórias Pedro Nava se refere aos privilégios dos filhos e parentes de professores dentro das faculdades. Se no seu tempo era assim lá em Belo Horizonte, no meu, depois, cá em Salvador, era mais ou menos igual. Só que, na minha turma, embora os filhos de professor tivessem o seu "internato" na Cadeira do pai - eu, como pai ou como filho, faria o mesmo-, faziam por bem merecê-lo. Eram não só merecedores da função como também bons alunos nas outras matérias. Já não assim numa outra turma posterior, na qual um filho de um catedrático não se mostrava dedicado ao estudo à altura do nome de seu pai. Logo no primeiro ano (Anatomia) deixou o exigente professor Eduardo Diniz (Biriba) atrapalhado. Ao final do ano, vendo este que "reprovar o apedeuta" poderia ferir os brios já um tanto desbotados do "grande mestre" resolveu aprová-lo, mas procurou compensar a sua injustiça, aprovando outros alunos da mesma turma que normalmente ele não aprovaria. Até velhos "odaliscas", repetentes de dois e três anos seguidos, foram aprovados.

- Se hei de aprovar "essa cavalgadura" - teria dito Biriba - que passem também esses outros que sabem até um pouco mais.

Conheci professor no Ginásio que acatava cartões de amigos, parentes e políticos, como outros que, diante de um "cartão", guardavam e só liam depois de dar a nota.

Contou-me minha irmã Myriam Luiza, cirurgiã-dentista, fato interessante que se deu consigo quando aluna do Prof. Jorge Novis na Faculdade de Odontologia. Certo dia, após a publicação das notas da prova de Fisiologia, cadeira do referido mestre, este advertiu algumas alunas pelo fato de, às vésperas da prova, terem lhe trazido cartões de "'padrinhos" e "madrinhas". Esclareceu o mestre que aqueles cartões só foram lidos depois de ter corrigido as provas e dado a nota merecida. Acrescentou que, ali naquela sala existia uma aluna - boa aluna, com as melhores notas - que jamais tinha The trazido um cartão, entretanto era irmã de um grande amigo e colega de turma. E citou nominalmente para todos Myriam Luiza Lemos Sant'Ana.

Bem se vê que o Jorge Novis era contra o pistolão, pelo menos no sentido de acolhê-lo, embora transpareça no seu esclarecimento que eu, como irmão, poderia ter pedido pela Myriam. Compreendo muito bem o seu pensamento, desde quando eu mesmo sempre fui contra o pistolão, mas o pedi uma vez à progenitora do Dr. Neves da Rocha, com o que pôde este me colocar como interno do Serviço Médico Municipal, terceiranista de Medicina. Aceitei a indicação de Vinicius Brito, então doutorando que deixava o internato do Hospital Santa Isabel e me punha em seu lugar, com o que pude defender sessenta ou oitenta mil réis por mês para o bonde e algum material escolar. O Vinicius Brito tinha me conhecido ligeiramente no Instituto Bahiano de Ensino, vários anos atrás. Bem, esses foram os que consegui, pois tentei muitos outros que não consegui. Também, não era filho de professor, nem ligado às altas rodas! Embora contra o pistolão, recebi meu pistolãozinho, como nos casos acima. Certa vez, numa roda de médicos e internos, no Hospital Santa Isabel, cometi a gafe de dizer que o pistolão estragava a sociedade. Parece que foi como falar em corda em casa de enforcado. Logo senti que não tinha apoio da "platéia" quando a turma emudeceu e um eminente cirurgião, filho de catedrático, cortou o assunto:

Eu sou a favor do pistolão!

Embatuquei. Fiquei até receoso de aborrecimentos futuros já que o homem mandava e eu era um simples interno do hospital. Mais tarde - estava de "guarda" nesse dia no hospital - pensei melhor no que dissera e no que ouvira. E como o que dissera não tinha sido bem recebido por ninguém naquele grupo concluí que eu devia estar errado. Se todos os outros pensavam diferentemente de mim eles é que deveriam estar certos. Aí é que cheguei à conclusão de que, no fundo no fundo, eu aprovava o pistolão, mas como esse vinha mais para os outros, eu o combatia. E isso mesmo - pensei bem - estou é com inveja dos que conseguem bons internatos, onde dispõem de material à vontade para seu estudo e ainda recebem um gordo salário - para mim, trezentos ou quatrocentos cruzeiros representavam gordos salários - da Faculdade.

Certamente eu invejava os rapazes que puderam estudar em colégios particulares depois frequentar a Faculdade sem problemas de falta de verba para o livro, o cinema, os clubes, a boa roupa; que quando andavam a pé o faziam por exercício e não por falta de dinheiro para o bonde. Depois desse dia cai mais na realidade e deixei de ser contra o pistolão. Fiquei porém sem compreender como pode ser contra o pistolão - e assim vi muitos - quem deveu ao menos a metade do que realizou ao pistolão, este, entregue na bandeja de prata da posição do pai - ou do tio - e do alto meio em que sempre viveu.

Contava o professor Leôncio Pinto - ouvi isso de seus próprios lábios, durante uma "aula" - que certo catedrático chegara a tal posição - incompetente que era - graças a pesca preparada por ele Leôncio Pinto. Dizia que na prova escrita do concurso, após o sorteio do ponto, o candidato declarou-se com cólicas e urgente necessidade de ir ao sanitário. A comissão examinadora achou que ele não poderia sair para isso, concordando porém em permitir que se "desobrigasse" numa saleta contígua, devidamente trancada de portas e janela e só com entrada e saída para o salão onde s realizava o exame. Foi pedido um penico. Este foi trazido por um bedel colocado no meio da saleta, tendo ao lado um pacote de papel higiênico. Só que, dentro do penico, veio a pesca, colocada pelo mestre Leôncio, então amigo e protetor do candidato. Terminava o mestre Leôncio a sua descrição dizendo:

- Vocês não podem imaginar a força que o futuro catedrático fez para deixar no penico uma sujidade qualquer!

Pistolões!…

Texto de autoria de José Lemos de Sant'Ana, médico, escritor, empresário

Transcrito por Lazanira Fernandes


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