Zorba e sua Bouboulina
Das
profissões que lidam com as pessoas, a Medicina é a mais abrangente, por ter relação
com os males do corpo e da alma. Ela trata do físico e do componente mental.
Muitas vezes a visita ao médico tem uma conotação psicológica em vez da física.
Como não é plausível o paciente fazer uma consulta para conversar, ele expõe
uma dor aqui e outra acolá. Para começar, fala da dor de modo casual e
superficial. Ele pretende mesmo é conversar, extravasar, compactuar seus
problemas com uma pessoa que certamente não vai lhe recriminar, não vai tornar
público os seus achaques e incômodos. O médico é, de certa maneira, um
partícipe das suas vivências.
Os
médicos, somos muito apressados e temos pouco tempo para ouvir. E se ouvíssemos mais, mais
entenderíamos os problemas dos clientes, que estão aquém de uma ressonância
magnética ou de um mero ultrassom abdominal. Este paciente foi conversar. O
médico já estaria lhes medicando e lhes prestando um grande serviço, somente
lhe ouvindo e expressado um sorriso.
As
mulheres são mais vulneráveis, mais sensíveis e mais tendidas à solidão. Além
do mais sua língua é mais solta do que a dos homens, fazendo com que a maioria
dos relatos fosse feitos por elas.
D. Irene
moradora do Barbalho, há muitos anos faz parte da minha clientela . Os anos de
convivência vão quebrando as arestas dos frios atendimentos médicos. A cada
dois meses, ela aparece para uma revisão para trazer uns exames e me fazer
participante dos tormentos lhe atribulam a alma. Tem sessenta e oito anos,
estatura mediana, solteira, já teve incontáveis relacionamentos. Era da noite.
Frequentou o Tabaris, o Fantoches, a Boate Clock, a Boate XK, o Anjo Azul e
todas as boates da Bahia, no tempo em que os hormônios circulavam em suas veias
com maior intensidade.
Ela
ficava à espreita, observando a chegada de navios ao porto. Morava no Santo
Antônio e do alto, observava toda a área portuária. Ela via quando chegavam os
navios, e quando isso acontecia, para lá se dirigia com bastante presteza, vez
que outras moças poderiam se antecipar e ganhar os marinheiros mais bonitos,
mais graduados ou os endinheirados.
Ela com
suas colegas eram admitidas no navio e lá faziam a festa. As mais bonitas eram
para o comandante e os oficias mais graduados. Como ela era das mais belas e
arrumadas, seus amores eram sempre os tripulantes mais graduados, os oficiais.
Muitos
dos marinheiros eram músicos e eles mesmos tocavam naquelas festas do cais.
Quando não havia música ao vivo, a radiola com os discos de vinil comandava a
festa.
Ela
namorou marinheiros canadenses e americanos, japoneses e argentinos, marujos de
todos os cantos do mundo, que aportavam por aqui. Era mulher de muitos amores.
Ainda hoje, mesmo pertencendo à classe média baixa, mesmo assim, denota
resquícios de antiga beleza.
D. Irene
está doida por um homem. Eu sempre lhe digo que há muitos por aí, e que ela
preste atenção, onde estiver. Poderá haver um cavalheiro de olho nela, e ela
pode não perceber.
_ Doutor,
não tem homem não!
_ Como
não há? – retruquei, tentando lhe consolar e lhe animar, para que releve a
solidão que insiste em lhe acompanhar.
_ Doutor, eu vou para o salão, faço meu
cabelo, minhas unhas, visto um vestido chamativo e apertado que mostra as
curvas da bunda. Sei que os homens gostam muito de engrossar mais os lábios,
para ficarem mais carnudos, e nada.
_ Doutor,
eu fui para a Praça da Piedade, onde aqueles senhores se sentam para conversar:
Numa destas vezes, havia dois coroas bem apessoados, sentados próximos, mas com
uma estreita distância entre eles. Eu me aproximei e pedi licença para me
sentar no meio deles, visando um papo, né, quem sabe?
_ Doutor,
sabe o que falaram? – Pode se sentar minha senhora! Minha senhora, uma porra!
Eu querendo ver se eles tinham um papo mais carinhoso: ô garota, coisa tal...
pode se sentar, qualquer coisa assim... Vem logo me chamar de senhora! Doutor,
os homens só querem menina nova!
_ Não é
bem assim – atalhei. A senhora não está velha. Est6á usada, é bem verdade, mas
em bom estado de conservação – lhe disse, tentando ser agradável.
_ Que
nada, doutor!
_ Então, o jeito é fazer um curso de
reciclagem – falei.
_ Não
preciso. Sei de tudo e topo tudo. E nada!
Adiantei
a consulta e me despedi dela, com a desculpa de estava atrasado para um
compromisso, e ela se foi.
Como eu
tinha estado recentemente em Creta,
aflorou à minha mente a imagem do filme Zorba, o Grego, baseado no
romance de Alexis Kazantzakis, de 1964. Na narrativa, a apaixonada senhora
Madame Hortense via em Zorba o reflexo do almirante italiano Cannavaro, que,
durante a ocupação da Grécia, na Segunda Guerra Mundial, lá instalou o seu
quartel-general. Ela, francesa, havia sido levada para Creta pelo almirante
inglês.
Em Creta
os três almirantes aliados alugaram uma casa, e lá Madame Hortense viveu
momentos maravilhosos com todo o almirantado aliado, além do inglês, o francês
e o italiano Cannavaro. É pena que sempre depois de uma coisa boa vem uma má ou
mesmo uma desgraça – a guerra acabou!
Os
almirantes se foram deixando-a triplamente viúva. O seu próprio papagaio
chamava muito por aquele italiano barbudo: Cannavaro.
Madame
Hortense só agora se dera conta de que o tempo havia passado e que a guerra
havia acabado.
Zorba,
com muitas doses de vinho no juízo reativou, naquela senhora, a chama da
felicidade que se fora. Ele pôs nela o carinhoso apelido de Bouboulina. “Minha
querida Bouboulina” – dizia. E, meigamente a beijava. Bailavam intensamente
para deleite do patrão.
Com ,lampejos de Creta ainda na cabeça, eu
tinha certeza, Bouboulina morava na Bahia
Extraido
do livro Estórias de Todo Dia, de autoria de Fernando Machado Couto, médico e
escritor
Digitado
por Luzenira Fernandes
1 Comentários
Que texto leve e envolvente.Adorei.